Sharon Yervi está de férias. Após quatro anos no Brasil, ela desfruta pela primeira vez de um período de descanso remunerado.
Enquanto prepara um bolo na kitnet onde mora no bairro Carianos, em Florianópolis, seu filho Esaú brinca com carrinhos no chão da cozinha. Aos quatro anos de idade, o menino alegre de olhos escuros e brilhantes é o principal motivo pelo qual Sharon, de 24 anos, e o marido Abraham, de 27, foram embora da Venezuela.
A gravidez em um país em crise, com um sistema de saúde colapsado, impediu que Sharon tivesse acesso às consultas de pré-natal e a medicamentos básicos. Conforme a gestação avançava, ela temia pela vida do filho.
“Não havia leitos nas maternidades, eu estava apavorada. Não tomei vitaminas durante a gravidez, pois não tinha onde comprar, comecei a ter problemas de pressão. Uma vizinha também teve o mesmo problema, não recebeu atendimento adequado e perdeu o bebê no parto”, lembra Sharon.
Com sete meses de gravidez, ela e o marido juntaram um pouco de dinheiro e entraram num ônibus em Caracas rumo à Pacaraima, no norte do estado de Roraima, na fronteira com a Venezuela. Na primeira noite, dormiram na rua em cima de pedaços de papelão, depois seguiram para a capital Boa Vista, onde encontraram apoio junto a membros de uma igreja, que pagaram hospedagem, alimentação e passagens de ônibus para que eles fossem até Manaus, onde vive um irmão de Abraham.
“Nunca agradeci tanto por uma cama. No hotel tinha café da manhã com frutas e sucos. Antes a gente só estava comendo besteiras”, conta.
No mesmo dia em que chegaram em Manaus, em agosto de 2018, ela deu à luz a Esaú. Ao longo do primeiro ano de vida do filho, fizeram um pouco de tudo para sobreviver – venderam salada de frutas, bananas, donuts, salgados, e Sharon fazia faxinas a R$50. Incentivados por uma amiga que vivia em Florianópolis, decidiram sair da capital amazonense, e no início de 2020 chegaram em Santa Catarina.
Sharon e Abraham vendiam bolo nas ruas de Florianópolis, mas logo em seguida veio a pandemia de COVID-19 e as vendas caíram consideravelmente. Foi nessa época que Sharon conheceu a Círculos de Hospitalidade e passou a receber mensalmente uma cesta de alimentos por meio do projeto Humanidade em Ação. Além da assistência emergencial, uma das bases da organização é fomentar a integração e a autonomia da população migrante, oferecendo cursos de capacitação e oficinas de empregabilidade. Sharon foi uma das participantes do curso de empreendedorismo Impulso, onde recebeu orientações sobre como montar um negócio e ganhou forno e batedeira para produzir os bolos.
Ela empreendeu por um tempo, enfrentando todos os desafios impostos por uma pandemia. Além da venda dos bolos, fazia faxinas e cuidava de idosos. A oportunidade de um trabalho com carteira assinada surgiu quando um vizinho comentou sobre uma vaga para trabalhar como merendeira em uma escola municipal. Sharon não pensou duas vezes e se candidatou à vaga. Foi aprovada na entrevista e precisava abrir uma conta bancária para receber o salário, mas durante atendimento no banco, o funcionário informou que não poderia abrir a conta.
“Ele me disse que eu estava ilegal, porque meu documento estava vencido”.
Sharon ficou desesperada. Há meses ela vinha tentando agendamento na Polícia Federal para renovar sua Carteira de Registro Nacional Migratório (CRNM), que é o documento de identificação de imigrantes residentes no Brasil, mas por causa da pandemia, o número de atendimentos foi reduzido e o tempo de espera aumentou. O prazo para renovação venceu antes que conseguisse agendar o atendimento.
Ela entrou em contato com a equipe do Projeto Integra*, implementado pela Círculos de Hospitalidade”, para pedir ajuda com o caso, pois temia perder a vaga de emprego. Rafaela Julich, à época agente de proteção do Integra, informou que havia uma portaria do governo ( Portaria nº 28/2022-Direx/PF, de 11 de março de 2022) ampliando até 15 de setembro de 2022 o prazo de regularização migratória para imigrantes e visitantes que tivessem preenchido eletronicamente o requerimento de autorização de residência até a data de publicação da portaria, mas não que haviam conseguido agendar atendimento na PF em razão de restrições locais da unidade de atendimento.
“O banco não sabia dessa portaria atualizada, se soubesse, eu não teria passado por isso. A agência ia fechar em quatro minutos, era uma sexta-feira, entrei correndo e fui direto ao atendente. Mostrei a ele a informação sobre a portaria e ele abriu a conta. Se não fosse a Círculos de Hospitalidade, não sei o que teria acontecido, eu não sabia dessa informação”.
Além de Sharon, a equipe do Projeto Integra também auxiliou o marido dela com o preenchimento de formulários, emissão de declarações e agendamento para a regularização do CRNM na Polícia Federal. Agora o casal está com todos os documentos em dia no Brasil. O trabalho com carteira assinada trouxe um pouco mais de tranquilidade à família. A renda é complementada com o que Abraham ganha trabalhando temporariamente em uma lavanderia e fazendo fretes.
A primeira a chegar
O semblante de Sharon se abre ao falar da rotina no trabalho. Ela é a primeira a chegar, pouco antes das 7h, na creche Hassis, que atende mais de 200 crianças de 0 a 6 anos no bairro da Costeira.
“Abro as janelas, coloco água para fazer café para as professoras. Depois chegam as mulheres da limpeza e o restante da equipe da merenda. A gente conversa, ri, a equipe tem uma sintonia muito boa. Preparamos e servimos o café da manhã e o almoço das crianças. Quero estudar pedagogia, pois me animei vendo como é o trabalho na escola”, conta Sharon.
Após o trabalho na escola, ela costuma ir à academia de musculação, cuidar de tarefas domésticas e escrever cartinhas com mensagens motivacionais em espanhol, que posteriormente são entregues a migrantes hispânicos que vivem na cidade. A escrita das cartinhas faz parte do trabalho que realiza na igreja frequentada por ela, o marido e o filho.
“Sempre faço cartinhas à mão. Mesmo que a gente não possa dar uma ajuda econômica, a gente leva uma mensagem positiva baseada na Bíblia”.
Além do sonho de cursar pedagogia, Sharon deseja se naturalizar no Brasil e ter um passaporte para poder viajar e visitar os familiares na Venezuela.
“Esaú é o primeiro neto da família, mas ninguém ainda o conhece”.
*O Projeto Integra é implementado pela Círculos de Hospitalidade de acordo com o termo de colaboração firmado com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, Convênio 917921/2021, e realizado com o financiamento do Edital de Chamamento Público SENAJUS N° 01/2021.
Texto e fotos: Sansara Buriti