“Juntei minha coragem e vim” – A história de Mahmoud no outro lado do mundo

 

Mahmoud Sagherji vivia com os pais, o irmão e duas irmãs na cidade de Douma, nos arredores da capital Damasco. O pai tinha uma pequena mercearia, Mahmoud estudava Direito. Em 2011, um ano antes de sua formatura, a vida que ele conhecia estava prestes a mudar para sempre. 

Em março daquele ano, manifestações pela democracia foram brutalmente reprimidas pelo governo de Bashar al-Assad. Grupos de oposição se armaram e a Síria caminhou rapidamente para um conflito violento que perdura até hoje e já matou mais de 300 mil civis. 

Após a formatura, em 2012, Mahmoud fugiu do país. Ficar na Síria significava ser alistado pelo exército e lutar na guerra. O destino foi a Jordânia, país vizinho que atualmente abriga cerca de 675.000 refugiados sírios registrados, de acordo com dados da Agência da ONU para os Refugiados (ACNUR). 

Por não ser signatária da Convenção de 1951 das Nações Unidas referente ao Estatuto do Refugiado, a Jordânia não reconhece nem garante proteção a pessoas refugiadas. Isso faz com que milhares de refugiados vivam de forma precária e sem direitos nas cidades e aldeias. Mahmoud viveu dessa forma por dois anos na capital Amã. 

“A vida não melhorou nem 1% lá. Eu estava buscando um futuro, queria ir para outro país. Fui às embaixadas de vários países, todas davam resposta negativa. Então a embaixada brasileira disse que tinha visto humanitário para os sírios. Juntei minha coragem e vim”, lembra Mahmoud, hoje com 35 anos.

 

Café, futebol e mesquita 

Quando desembarcou em São Paulo junto com dois amigos sírios, todos sem falar uma palavra em português, Mahmoud pouco sabia sobre seu novo destino. “Para nós, aqui era o outro lado do mundo. Futebol e café, era isso que a gente sabia sobre o Brasil”, conta. Mas também tinha algo que eles sabiam que iriam encontrar no estado que abriga a maior comunidade muçulmana do país: uma mesquita.

A mesquita é uma casa de oração e também de encontro para os muçulmanos. Foi em uma mesquita em São Paulo que informalmente o grupo recebeu orientações sobre como fazer um CPF, carteira de trabalho, onde morar. Por meio dessa rede de contatos da comunidade, Mahmoud veio para Florianópolis.  

“Florianópolis é uma cidade muito linda, a natureza, o clima. É uma cidade segura. O sírio que fugiu da guerra procura um lugar seguro. Eu não tinha muita coisa, só minha roupa e um pouco de dinheiro. Muita gente me ajudou no início, todos os árabes que estão aqui ajudam os que chegam.” 

Ele conseguiu emprego como operador de caixa de uma padaria na rua Conselheiro Mafra, local onde há muitos anos se estabeleceram comerciantes árabes. 

“Eu só falava ‘bom dia’. Lembro de mostrar a calculadora para o cliente, pois eu não sabia falar o número“, recorda o sírio, acrescentando que em situações mais complicadas uma funcionária brasileira ajudava com a tradução. Após o bom desempenho no caixa, ele ganhou a confiança do proprietário e assumiu mais responsabilidades. Organizava os funcionários, fazia pedidos de produtos, abria e fechava a padaria. Foram dois anos nessa rotina até que em 2016, com a ajuda do patrão palestino, encontrou um lugar para abrir seu próprio negócio de comida árabe. 

Foi nessa época que ele conheceu o projeto de aulas de português da Círculos de Hospitalidade. Nos anos seguintes, a organização atuaria diretamente na realização do maior sonho de Mahmoud.

Mahmoud em seu restaurante de comida árabe no centro de Florianópolis.

 

Fim de tarde na orla de Coqueiros, em Florianópolis, cidade onde Mahmoud encontrou a chance de recomeçar.

Faltando um pedaço 

Aos poucos a vida melhorava. O restaurante no bairro Kobrasol, em São José, ia bem, as pessoas elogiavam o sabor das esfihas, kebabs e shawarmas preparados por um chef sírio amigo de Mahmoud. Mas as conquistas não eram plenamente desfrutadas, pois faltava um pedaço importante de sua vida: a família. 

Foram muitas as tentativas de trazer os parentes para o Brasil,  mas a burocracia, os problemas de saúde do pai e as restrições que o povo sírio enfrenta para sair do país foram adiando o reencontro. 

Em 2020, com o apoio da Círculos de Hospitalidade, e a partir de 2021, por meio do acompanhamento do Projeto Integra*, implementado pela organização, Mahmoud deu entrada no pedido de reunião familiar junto ao governo brasileiro. Em abril de 2022, dez anos após ter fugido da Síria, ele finalmente realizava o sonho de estar com os pais e as irmãs. 

Lembrar da chegada no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, causa comoção na família Sagherji. Sentados no sofá da sala do apartamento onde vivem, em uma rua tranquila e próxima ao mar de Coqueiros, região continental de Florianópolis, eles tentam elaborar palavras para descrever o reencontro. 

“Dez anos que não nos víamos, choramos muito, finalmente tinha dado certo”, diz  Fayzeh, mãe de Mahmoud, e as lágrimas imediatamente transbordam dos olhos de todos.

Mahmoud tenta articular uma frase, mas não sai. Sua expressão revela que naquele instante nenhuma palavra em qualquer idioma seria capaz de traduzir toda a dor, a saudade, os anos de separação.

 

“Dez anos de guerra mudam as pessoas”

A casa e a mercearia da família viraram ruínas, são lugares que agora só existem na memória. 

“É muito difícil viver na Síria. Você vive em busca de conseguir comida, energia elétrica, gasolina. Falta água, falta pão. As prioridades da vida mudam. Dez anos de guerra mudam as pessoas. Quando minha família chegou, foi como se eu estivesse conhecendo eles de novo”, confessa Mahmoud. 

Quando ele fugiu da Síria, a irmã mais nova tinha 9 anos. Hoje, aos 19, Binan quer aprender português e concluir o ensino médio. Bitol, de 26 anos, confecciona acessórios bordados à mão e vende os produtos pela internet. Fayzeh, a mãe da família, faz deliciosos doces árabes que Mahmoud pretende incluir no cardápio dos restaurantes.

Em 2021, ele inaugurou o segundo restaurante árabe, desta vez no centro de Florianópolis. As unidades Centro e Kobrasol empregam 14 pessoas – dez brasileiros e quatro sírios. Haitham, o pai, tem ajudado na cafeteria do restaurante do centro. Mesmo não falando português ele gosta muito de sair de casa para trabalhar no estabelecimento do filho.

Nos momentos de folga, Mahmoud os leva para conhecer as belezas de Florianópolis. 

“Onde eu ia pensava neles. Se comia algo, pensava se minha mãe iria gostar. Na Síria não é comum comer frutos do mar. Minha família gostou muito de comer camarão e ostra. Já fomos na Armação, Ingleses, Jurerê, Praia do Forte. Eles acharam as praias lindas.” 

 

Mahmoud e o pai Haitham, que vem ao restaurante diariamente para trabalhar na cafeteria.

O primeiro Ramadã juntos no Brasil 

O Ramadã, nono mês do calendário lunar islâmico, é considerado um período sagrado de oração e recolhimento espiritual para os muçulmanos. Segundo o Islã, foi nesse mês que Deus revelou o Alcorão ao profeta Maomé. Durante 29 ou 30 dias, dependendo da lua, muçulmanos em todo o mundo praticam jejum do nascer ao pôr do sol. As refeições antes e após o jejum costumam ser um momento especial para as famílias.

Mesmo faltando o irmão mais novo de Mahmoud que ainda está na Síria, o Ramadã deste ano ficará marcado por ter sido o primeiro com a família no Brasil. 

“Eu tinha saudade de comer as comidas da minha mãe, de sentar à mesa com a família. Por dez anos eu não tive esse sentimento”, diz Mahmoud.

Comer e oferecer comidas como expressão de afeto é algo central na cultura árabe. Depois de uma década sem poder demonstrar o amor pelo filho através da culinária, Fayzeh não tem poupado esforços para recuperar o tempo perdido. Bem-humorado, Mahmoud conta que a balança logo apresentou os resultados.

“Minha mãe fala ‘jura por Deus que você vai comer isso’, é um costume nosso. E assim, jurando e comendo, engordei oito quilos em três meses!”

Quadrinho bordado por Bitol para a sobrinha.

Pouco tempo depois da vinda da família, outra chegada era muito aguardada. Casado há dois anos com uma brasileira, Mahmoud esperava o nascimento da primeira filha. Em 2022, a bebê veio ao mundo enchendo os corações de alegria. A tia Bitol bordou um quadrinho com uma frase em árabe abençoando a menina.

Um novo tempo de esperança está começando para os Sagherji.

 

 

*O Projeto Integra é implementado pela Círculos de Hospitalidade de acordo com o termo de colaboração firmado com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, Convênio 917921/2021, e realizado com o financiamento do Edital de Chamamento Público SENAJUS N° 01/2021.

Texto e fotos: Sansara Buriti

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Cynthia Orengo

Vice-presidente

Cynthia é gestora de pessoas e servidora do Ministério Público Federal. Trabalha com projetos que resgatam o princípio da dignidade da pessoa humana, por meio de ações de responsabilidade social e voluntariado. Foi parceira da Círculos de Hospitalidade em diversos projetos e ações, como o Pedal Humanitário, que idealizou junto com a Bruna Kadletz. Apaixonada  pelas causas humanitárias, acredita em um mundo sem muros e fronteiras. Na organização, trabalha com ações de acolhimento, proteção e integração de pessoas deslocadas.