Construindo pontes entre culturas diferentes: o trabalho de Clefaude Estimable no Projeto Integra

Ao chegar em outro país, seja de forma voluntária ou forçada, migrantes e refugiados encontram uma série de desafios que impactam diretamente no processo de adaptação à nova sociedade. Aprender o idioma local costuma ser uma das primeiras necessidades, afinal a comunicação é um elemento fundamental para a convivência humana. Mas ser fluente em outra língua não garante a compreensão da cultura daquela comunidade, seus valores, crenças e comportamentos. 

Assim como tradutores de idiomas podem nos ajudar a entender o que uma pessoa está falando em uma língua que desconhecemos, profissionais da área da mediação cultural trabalham na tradução de culturas, buscando promover não só o entendimento linguístico, mas também cultural entre pessoas de diferentes países. 

Clefaude Estimable, 38 anos, aprendeu desde cedo a transitar entre culturas. Nascido na fronteira entre o Haiti e a República Dominicana, países  que compartilham o território da Ilha de São Domingos, no mar do Caribe, ele começou ainda na infância a colaborar voluntariamente como intérprete. 

Depois do terremoto que devastou o Haiti em 2010, Clefaude acompanhou um grupo formado por jornalistas, psicólogos, médicos e religiosos que realizavam ajuda humanitária. Alguns desses profissionais conseguiam se comunicar com a população, mas tinham dificuldade em compreender a cultura haitiana. Foi então que ele teve a ideia de se aprofundar na área de mediação cultural. 

Após estudos no Haiti, Itália, Suíça e México, nas áreas de ciências sociais e religiosas e arte bizantina, Clefaude mudou-se há seis para o Brasil e cursou psicologia. Atualmente, faz parte da equipe da Círculos de Hospitalidade, onde trabalha como mediador cultural do Projeto Integra*. 

Clefaude Estimable é formado em psicologia e atua como mediador cultural no Projeto Integra.

“A mediação cultural é uma função que vai além de uma simples tradução ou transmissão de uma informação de um ponto A para um ponto B. É uma ponte que une duas ou mais culturas diferentes, articula e coopera para o acolhimento e integração de imigrantes e refugiados na sociedade, trabalha na gestão da diversidade, como tensões, estresse, resiliência e construção de interações positivas entre as partes envolvidas”, explica Clefaude.

Dentro do Projeto Integra, ele busca atender a população migrante a partir da combinação entre informar sobre direitos e acesso a serviços públicos e oferecer escuta qualificada e acolhimento emocional, levando em consideração que o processo migratório pode afetar a saúde mental dos indivíduos. Fluente em seis idiomas, Clefaude também acompanha os migrantes e refugiados atendidos pelo projeto em audiências, hospitais e outras instituições públicas, utilizando a mediação cultural para facilitar a comunicação entre as pessoas. Em 2022, 403 pessoas foram atendidas pelo Projeto Integra na área de mediação cultural.

“Sinto-me feliz e realizado por fazer este trabalho, pois é uma oportunidade única para contribuir para uma sociedade mais justa e mais humana. Lembro de um caso de uma jovem imigrante de 23 anos, cheia de sonhos, que não falava nada de português. Chegou ao Brasil sozinha e teve muita dificuldade para se inserir no mercado de trabalho. Ela passou muito tempo encerrada num quarto até o ponto que adoeceu mentalmente. Quando foi ao hospital, os profissionais tiveram bastante dificuldade para fazer o atendimento”, conta Clefaude. Por recomendação da irmã de uma das profissionais do hospital, ele foi acionado e passou a acompanhar semanalmente a jovem, utilizando elementos culturais do país de origem dela como ferramenta para a sua  recuperação. 

Uma área em desenvolvimento 

Os serviços e pesquisas na área de tradução humanitária e mediação cultural para migrantes e refugiados são recentes no Brasil. Embora historicamente o país tenha recebido populações migrantes de diversas partes do mundo, foram os expressivos fluxos migratórios de haitianos e venezuelanos, observados a partir de 2010, que tornaram evidente a necessidade de estabelecer uma comunicação adequada e capaz de garantir os direitos dessas populações. 

Em 2021, no âmbito da Cátedra UNESCO/Memorial para a Integração da América Latina, foi realizado um curso e um livro digital abordando os desafios e importância da tradução humanitária e da mediação cultural para o acolhimento de migrantes e refugiados. A publicação aponta o trabalho de mediadores culturais como crucial para a identificação de necessidades humanitárias e prevenção de eventuais equívocos por parte das instituições. 

Em artigo publicado na revista Das Amazônias, Clefaude Estimable e  Gisely Pereira Botega  buscaram  compreender os  sentidos  atribuídos à mediação cultural por parte de  profissionais de  psicologia  e serviço social  de  um  Centro  de  Referência  de  Assistência  Social  (CRAS), em Florianópolis.

A partir do relato de profissionais daquela unidade, os pesquisadores constataram que a dificuldade de comunicação e falta de capacitação para atender pessoas migrantes e refugiadas limita o atendimento e a criação de vínculos, causando frustração tanto na equipe quanto na população não falante de português. 

“Observou-se  que a  mediação  cultural  tem  um  papel  importante  para  as  trabalhadoras  do  CRAS, auxiliando  nas  questões  que  envolvem  línguas,  costumes  e  crenças  no  atendimento  aos  imigrantes  e refugiados”, explica Clefaude.

Clefaude durante atendimento presencial do Projeto Integra no escritório da Círculos de Hospitalidade, em Florianópolis.

PL no 5.182/2020

Tramita no Senado um projeto de lei, PL no 5.182/2020, elaborado por diversos profissionais da sociedade civil com o apoio do senador Paulo Paim, para tornar  obrigatória a inserção de tradutor e de intérprete comunitário em ambientes institucionais de atendimento ao público para prover assistência linguística a todas as pessoas que não falam português brasileiro. O projeto determina ainda a regulamentação da profissão de tradutor e intérprete comunitário.

A presença de tradutores e intérpretes em instituições públicas federais, estaduais e municipais deverá beneficiar indivíduos que enfrentam dificuldades para acessar direitos fundamentais por não terem proficiência em português – situação que afeta não somente migrantes e refugiados, mas também indígenas, surdos e analfabetos, por exemplo. 

Levando conhecimento para além da organização

Além dos atendimentos individuais no escritório da Círculos de Hospitalidade, Clefaude tornou-se uma referência em Santa Catarina na área da mediação cultural, e tem participado de diversos eventos em escolas, universidades e outras instituições públicas para falar sobre migração e comunicação intercultural. Durante as palestras, ele costuma falar de sua própria experiência como imigrante no Brasil e ressaltar a importância da construção de comunidades acolhedoras para populações deslocadas. 

“Eu vejo que tem um futuro não só para os imigrantes, mas também para a sociedade, porque se está promovendo uma cultura de paz, uma cultura harmônica, onde cada um se sente importante”, acredita Clefaude. 

Palestra sobre mediação cultural no Instituto Federal de Santa Catarina.

Saiba mais

Se você quiser saber mais sobre acesso a direitos, comunicação e mediação cultural no contexto das migrações, confira esses materiais:

Caminhos para a proteção de pessoas refugiadas e migrantes  

A cartilha elaborada pelo Projeto Integra, implementado pela Círculos de Hospitalidade, apresenta orientações básicas sobre o acesso a direitos e serviços públicos para migrantes e refugiados no Brasil. 

Guia de comunicação intercultural

Lançado em 2022 pela Organização Internacional para as Migrações (OIM) e pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), o guia apresenta conceitos sobre a comunicação intercultural com foco na promoção do respeito à diferença. 

Comunicação Intercultural – Caderno de atividades

Lançado em 2022 pela Organização Internacional para as Migrações (OIM) e pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), o caderno oferece exercícios e atividades visando desenvolver competências de comunicação intercultural.

Tradução humanitária e mediação cultural para migrantes e refugiados 

Lançada em 2021, a publicação editada pelo Centro Brasileiro de Estudos da América Latina (Cbeal) surge a partir do curso ministrado no âmbito da Cátedra UNESCO/Memorial para a Integração da América Latina. O livro reúne textos de pesquisadores e profissionais que atuam na área das migrações e deslocamentos forçados.

 

*O Projeto Integra é implementado pela Círculos de Hospitalidade de acordo com o termo de colaboração firmado com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, Convênio 917921/2021, e realizado com o financiamento do Edital de Chamamento Público SENAJUS N° 01/2021.

 

Texto: Sansara Buriti

Fotos: Sansara Buriti, Clefaude Estimable (arquivo pessoal)

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Cynthia Orengo

Vice-presidente

Cynthia é gestora de pessoas e servidora do Ministério Público Federal. Trabalha com projetos que resgatam o princípio da dignidade da pessoa humana, por meio de ações de responsabilidade social e voluntariado. Foi parceira da Círculos de Hospitalidade em diversos projetos e ações, como o Pedal Humanitário, que idealizou junto com a Bruna Kadletz. Apaixonada  pelas causas humanitárias, acredita em um mundo sem muros e fronteiras. Na organização, trabalha com ações de acolhimento, proteção e integração de pessoas deslocadas.