Recomeçar sempre que for preciso: a história de Rebeca

Rebeca Viana abre o cadeado do portão de madeira e entra em uma construção de tijolos coberta por uma laje. Enquanto caminha pela obra, a cabeleireira e manicure de 35 anos descreve como vai dividir o espaço que acomodará cinco pessoas da família. Serão dois quartos, cozinha, banheiro e mais um cantinho para montar o salão de beleza na entrada principal. 

“A primeira coisa que vou fazer quando me mudar é uma oração de agradecimento, pois Deus tem sido bom com a gente. Depois vou fazer um churrasco, há que se comemorar!”, conta Rebeca, acrescentando que o churrasco de casa nova será à moda venezuelana, onde a carne é acompanhada por guasacaca, um molho feito com abacate, vinagre, sal e temperos verdes.

A modesta construção no Alto da Caieira do Saco dos Limões, em Florianópolis, é a realização de um sonho que parecia distante quando Rebeca chegou em 2017 no Brasil. Na época, ela estava grávida, com pouco dinheiro no bolso e sem lugar para morar.

Rebeca em frente à construção da casa própria em Florianópolis.

A partida 

“Eu estava começando um salão de beleza, também fazia pães artesanais para vender, mas foi ficando cada vez mais difícil encontrar ingredientes. Quando tiram a oportunidade de você crescer, de alcançar algo, não tem como continuar. Eu tinha uma casa, mas não tinha comida, estava irreconhecível pesando 42 quilos, sentia taquicardia”, lembra Rebeca.

A escassez e a inflação no preço dos alimentos – uma das consequências da crise econômica, política e social da Venezuela – foram determinantes para Rebeca deixar o país. 

Não havia esperança de que a situação pudesse melhorar e ela temia pelo futuro dos dois filhos. Vendeu alguns pertences, deixou as crianças com o ex-marido e começou a planejar a viagem junto com uma irmã. 

Durante os preparativos para a vinda ao Brasil, ela descobriu que estava grávida do namorado com quem tinha recém-terminado, mas isso não a fez desistir de ir embora. Para ela, naquele momento, nenhum lugar parecia mais desolador do que a Venezuela. 

A chegada

Rebeca, grávida de sete meses, e a irmã percorreram cerca de mil quilômetros por via terrestre do estado de Monagas até Roraima. Ao desembarcarem na rodoviária da capital Boa Vista, perceberam que dezenas de outros venezuelanos haviam montado acampamentos improvisados no entorno. Sem lugar para ir, elas passaram dias de sol escaldante e noites chuvosas na área externa do terminal. Depois foram encaminhadas para um abrigo público, mas o local, um ginásio esportivo, era tão precário quanto a rodoviária.

No abrigo, Rebeca conheceu venezuelanos que planejavam ocupar uma casa abandonada em um terreno próximo às margens do Rio Branco. Ela e a irmã se uniram ao grupo e passaram a viver com outras 50 pessoas em uma casa com apenas um banheiro. A comunidade local, compadecida com a situação, costumava deixar alimentos na porta da residência. 

Rebeca cozinhava e colaborava com a manutenção da casa ocupada. Também tratava dos pés dos amigos que voltavam machucados e com bolhas de sangue após dias inteiros caminhando pela cidade em busca de trabalho. Ela conta que na época o valor médio da diária paga a um venezuelano para serviços de construção, limpeza de terrenos e faxinas era de R$30. Dada as condições em que vivia, Rebeca temia que sua filha pudesse ser encaminhada a um abrigo após o nascimento. Foi quando decidiu pedir apoio ao pai da menina.

A casa onde viviam 52 pessoas em Boa Vista, Roraima.

O nascimento 

“Minha filha nasceu com baixo peso, pois eu não me alimentava bem. Ela ficou dez dias na maternidade para fazer exames e ganhar peso. Para mim, foram os dias em que eu melhor comi e dormi. Era como um palácio, eu não queria ir embora. Eu chorava ao ver outras mulheres reclamando e até jogando a comida na lixeira, pois eu lembrava de um monte de gente sem ter nada para comer lá na rodoviária”, conta Rebeca. 

Quatro dias depois do nascimento, o pai da menina chegou da Venezuela direto para a maternidade. Eles reataram o relacionamento e iniciaram uma nova fase juntos. 

Quando a filha completou dois meses, o casal deixou a ocupação e foi morar em uma pequena casa de madeira em um bairro distante do centro da cidade. O companheiro de Rebeca conseguiu um emprego em uma lanchonete, e ela dividia o tempo entre os cuidados com a filha recém-nascida e os serviços de manicure e cabeleireira. Meses depois, conseguiu realizar seu principal objetivo: trazer os outros dois filhos que haviam ficado na Venezuela.

“Foram nove meses sem comprar nada para mim. Se a sandália arrebentava, eu consertava com um arame. Estava juntando todo o dinheiro que podia para trazê-los”, recorda.

Ela estava feliz com as crianças por perto, mas o aumento do custo de vida e a carência de oportunidades em Boa Vista fez a família considerar a mudança para outra cidade. 

Uma nova cidade

Rebeca, o companheiro e os três filhos, Carolina (16), Rafael (9) e Yulieth (4), chegaram em Florianópolis em fevereiro de 2020, por meio do programa de interiorização da Operação Acolhida. A iniciativa do Governo Federal realoca voluntariamente pessoas migrantes e refugiadas da Venezuela em municípios onde possam encontrar melhores oportunidades e integração social, diminuindo a concentração na cidade de Boa Vista. De abril de 2018 até maio de 2022, mais de 76 mil pessoas foram realocadas para 844 municípios brasileiros. A irmã de Rebeca foi para o Mato Grosso.

“Chegamos com R$1.200 que recebemos pela venda da geladeira, do fogão e de tudo que juntamos em Boa Vista. Aí, veio a pandemia e fecharam tudo. Graças ao auxílio emergencial, conseguimos pagar o aluguel de uma kitnet na Servidão da Felicidade, mas era um lugar difícil de chegar, tinha muito barro, escadas, era ruim para meu menino, pois ele tem dificuldades para andar. Eu pedia a Deus para morar perto do asfalto”. 

Rebeca e os filhos Rafael e Carolina.

Rafael sofreu uma lesão cerebral durante o parto e ficou com sequelas que comprometeram a fala e os movimentos do corpo. No Brasil, o menino tem acesso a acompanhamento médico que dificilmente teria na Venezuela. De acordo com relatório de 2022 da ONG Human Rights Watch, o colapso do sistema de saúde venezuelano levou ao ressurgimento de doenças infecciosas e evitáveis por vacinas. Além da falta de medicamentos, os serviços básicos de saúde sofreram interrupções e muitos profissionais da saúde emigraram. 

Desde 2021, Rafael recebe o Benefício de Prestação Continuada (BPC), benefício prestado pelo INSS, no valor de um salário mínimo, para idosos e pessoas com deficiência.

Pensando no bem estar do menino, Rebeca alugou no mesmo bairro uma kitnet perto do asfalto. O minúsculo imóvel, aos fundos de uma mercearia, abriga os cinco membros da família. Todos dividem o mesmo quarto. Na cozinha, ela instalou um espelho e um móvel com equipamentos e produtos de beleza para atender a vizinhança.

“O salão dentro da cozinha é o que eu tenho agora. Se vier algo maior, glória a Deus! Mas se não, a gente tem que fazer as coisas com o que a gente tem”, afirma Rebeca, que cobra R$25 pelo corte de cabelo.

Na cozinha de casa, Rebeca atende a vizinhança do Alto da Caieira do Saco dos Limões.

Ela pretende seguir como empreendedora, pois acredita que assim terá mais flexibilidade de horários para estar com os filhos. O companheiro arranjou emprego de carteira assinada como auxiliar de pedreiro em uma construção civil, e a renda fixa trouxe um pouco mais de segurança à família.

Assim como grande parte dos brasileiros, a família venezuelana sonha com a casa própria. A poucos metros da kitnet, Rebeca encontrou um terreno pequeno e com preço compatível com o que a família pode pagar. A casa está sendo erguida aos poucos, com a colaboração de amigos e dicas de tutoriais do Youtube sobre construção. A ideia é construir mais dois andares ao longo dos anos.

“Quero garantir um teto, assegurar algo para meus filhos. A vida se trata de desafios, de não ter medo de enfrentar responsabilidades. O sonho sempre tem que se manter vivo. Quando sentir que aquele sonho está morrendo, que não tem mais jeito, é quando você mais tem que falar ‘não vou desistir, vou continuar’. E começar de novo, todas as vezes que for necessário”.

Rebeca conheceu a Círculos de Hospitalidade logo que chegou em Florianópolis. Ela já participou de cursos de empreendedorismo e recebeu cestas básicas por meio de projetos da ONG. Atualmente é atendida pelo Projeto Integra*, que está auxiliando sua família com a documentação necessária para pedir residência permanente no Brasil. 

“O Brasil representa a nova oportunidade que Deus colocou em meu caminho para seguir adiante e dar uma melhor qualidade de vida para mim e para minha família. Representa amor ao próximo, humanidade, pois encontrei isso aqui”, conclui Rebeca. 

*O Projeto Integra é implementado pela Círculos de Hospitalidade de acordo com o termo de colaboração firmado com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, Convênio 917921/2021, e realizado com o financiamento do Edital de Chamamento Público SENAJUS N° 01/2021.

 

Texto e fotos: Sansara Buriti

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Cynthia Orengo

Vice-presidente

Cynthia é gestora de pessoas e servidora do Ministério Público Federal. Trabalha com projetos que resgatam o princípio da dignidade da pessoa humana, por meio de ações de responsabilidade social e voluntariado. Foi parceira da Círculos de Hospitalidade em diversos projetos e ações, como o Pedal Humanitário, que idealizou junto com a Bruna Kadletz. Apaixonada  pelas causas humanitárias, acredita em um mundo sem muros e fronteiras. Na organização, trabalha com ações de acolhimento, proteção e integração de pessoas deslocadas.