Naila Clermont dormia em seu quarto quando sentiu a cama mexer. Pensou que era o pai tentando acordá-la, mas ao abrir os olhos percebeu que algo estranho acontecia naquele dia.
“A penteadeira estava vindo em minha direção. Meu pai entrou no quarto para ver se eu estava bem, depois fomos ao quarto da minha irmã. No momento em que fui na rua, vi muitas coisas ruins, coisas que não queria ver de novo, sou muito sensível”, diz Naila em voz sussurrada, como se o terror daquele dia pudesse ser atraído por memórias pronunciadas em voz alta.
Aos 17 anos, ela abriu a porta de casa e viu a cidade de Porto Príncipe virada em escombros. Felizmente, a residência onde morava com a família não sofreu danos. 220 mil pessoas morreram e pelo menos 1,5 milhão ficaram desabrigadas após o terremoto que atingiu o Haiti em 12 de janeiro de 2010. A tragédia ampliou ainda mais a miséria e a instabilidade política da nação considerada a mais empobrecida das Américas, fazendo com que milhares de haitianos buscassem refúgio em outros países.
Desde 2012, o governo brasileiro concede visto humanitário para acolher cidadãos do Haiti. Cerca de 130.000 haitianos vivem atualmente no Brasil formando junto com os venezuelanos os principais grupos de migrantes e refugiados no país.
Naila, hoje com 30 anos, conta que nunca havia pensado em morar no Brasil. Na época do terremoto, ela era uma jovem que gostava de sair para dançar, ir à praia, estar na companhia das amigas. Mas o pai não via futuro para eles em um país em crise e começou a traçar um plano de saída. Anos depois, ele emigrou para a Flórida e incentivou a vinda de Naila para o Brasil, onde alguns parentes residiam no interior do Rio Grande do Sul.
“Meu pai decidiu me mandar para cá porque no Haiti a situação política está muito ruim. Ele quer que eu tenha paz, tenha uma outra vida, mas tenho saudade da minha família, meus amigos, do meu país”, confessa.
Em 2020, menos de uma semana após a sua chegada no Rio Grande do Sul, foi decretado estado de calamidade pública em razão da pandemia de Covid-19. Naila enfrentou várias dificuldades e não se adaptou à vida no interior gaúcho. Uma amiga haitiana a convidou para conhecer Florianópolis, e desde 2021 ela reside em Capoeiras, bairro da região continental. O processo de adaptação também não foi fácil na capital catarinense.
“Se você tem vergonha de falar, você nunca vai falar. Quando cheguei em Florianópolis fiquei vários meses sem sair de casa porque não sabia falar português, não queria falar errado. Depois pensei que tinha de sair assim mesmo. Iria falar errado, as pessoas iriam me corrigir e tudo bem”.
Ela fez aulas de português no IFSC e atualmente está em busca de emprego. Já trabalhou como auxiliar de limpeza e cozinheira em restaurantes. Agora quer encontrar empregos diurnos para que possa frequentar à noite as aulas do programa EJA (Educação de Jovens e Adultos). O objetivo é concluir o ensino médio e se preparar para o vestibular.
“Penso em fazer agronomia, pois gosto muito de plantas, de natureza”, diz Naila, acrescentando que nas praias do Haiti há muitas plantas e árvores bonitas como em nenhum outro lugar.
Os serviços do Projeto Integra*, implementado pela Círculos de Hospitalidade, vêm contribuindo para a sua adaptação em Santa Catarina. Ela foi encaminhada para atendimentos de saúde, vagas de trabalho e tem recebido apoio psicológico do mediador cultural e psicólogo da equipe, Clefaude Estimable, nascido e criado no Haiti. Naila afirma se sentir mais à vontade recebendo atendimento em crioulo haitiano, seu idioma materno.
“Recebi outros atendimentos onde só me receitavam remédios, não conversavam comigo. Aqui com o Clefaude eu consigo conversar sobre tudo, saio me sentindo bem”.
Quando bate a saudade, o telefone celular ajuda a conectá-la com amigos e familiares.
“Apesar da distância, o amor por eles continua o mesmo”, afirma com um sorriso. Além do Brasil, seus familiares estão nos EUA e na República Dominicana, cada um em busca da paz e da melhoria de vida que parece irrealizável no Haiti.
“Sei que muitas coisas vão aparecer e tentar me derrubar ao longo do caminho, mas eu costumo olhar no espelho e dizer para mim mesma que sou forte e não vou cair”.
*O Projeto Integra é implementado pela Círculos de Hospitalidade de acordo com o termo de colaboração firmado com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, Convênio 917921/2021, e realizado com o financiamento do Edital de Chamamento Público SENAJUS N° 01/2021.
Texto e foto: Sansara Buriti.