Refúgio e Direitos Humanos: a garantia de direitos diante de crises sem precedentes

Em celebração ao Dia Mundial do Refugiado, o Ministério Público Federal em Santa Catarina,  em parceria com a Círculos de Hospitalidade, por meio do Projeto Integra*, e com a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), realizou no dia 21 de junho o evento online “Refúgio e Direitos Humanos: a garantia de direitos diante de crises sem precedentes”.

Conforme o último relatório do ACNUR,  o número de pessoas forçadas a fugir de conflitos, violência, violações de direitos humanos e perseguições ultrapassou a marca de 100 milhões. 

O número alarmante e histórico abrange refugiados, solicitantes da condição de refugiado e pessoas deslocadas internamente, sendo o resultado de novas ondas de violência e conflitos prolongados.

Em resposta a esse cenário preocupante, o evento propôs uma reflexão sobre a atuação de diferentes instituições e pessoas envolvidas em respostas humanitárias na promoção dos direitos humanos, bem como a discussão a respeito da  importância de humanizar as narrativas sobre  pessoas forçadas a se deslocar.

A conversa  reuniu Juliana Tubini, representante do ACNUR, João Paulino, advogado angolano, Nathaly Súnico, advogada venezuelana, e Abdul Jarour,  ativista sírio e defensor da causa migratória. A mediação foi realizada por Daniele Escobar,  procuradora da República em Santa Catarina,  e por Bruna Kadletz, cofundadora da Círculos de Hospitalidade.

Assista ao evento na íntegra no canal Bem Viver, do Ministério Público Federal em Santa Catarina.

A procuradora Daniele Escobar iniciou o evento destacando que o Brasil possui uma legislação avançada para o recebimento e proteção dessas pessoas. Entretanto reconhece que é necessário melhorar a forma de acolhimento. 

“Esse Dia Mundial do Refugiado é para ser lembrado como um dia de luta. Ainda temos muito o que fazer no sentido de acolher os que aqui chegam, temos que escutá-los para que possamos atender suas demandas e para que o Brasil seja realmente acolhedor. Não existe o meu país, não existe o seu país; ninguém é dono de lugar nenhum, somos todos seres humanos e temos direito à proteção em qualquer lugar que estejamos”, diz a procuradora. 

Bruna Kadletz, cofundadora da Círculos de Hospitalidade, relembrou o trágico cenário de 2015, ano em que os deslocamentos forçados foram noticiados em todo o mundo e ficaram conhecidos como “a crise dos refugiados”.  Até dezembro daquele ano, quase 1 milhão de pessoas refugiadas e migrantes, oriundas principalmente da Síria, Afeganistão e Iraque, se arriscaram por perigosas rotas marítimas e terrestres para chegar à Europa. Pelo menos 3.500 pessoas perderam a vida em naufrágios de botes superlotados. De lá para cá, a situação ficou ainda mais crítica, como aponta o relatório do ACNUR. 

“Atravessar essas fronteiras geográficas acaba não sendo o único desafio que essas pessoas enfrentam. Quando elas chegam no destino almejado, ou no meio do caminho mesmo, há outras fronteiras a serem atravessadas, como aprender a navegar na nova cultura, aprender códigos de convivência,  atravessar fronteiras do preconceito e da descriminação”,  explica Bruna, que também evidenciou a existência de ações de organizações locais e internacionais para acolher e tratar com hospitalidade essas pessoas nas diferentes sociedades em que chegam. 

Em Santa Catarina, por exemplo, a Círculos de Hospitalidade, por meio do Projeto Integra*, já atendeu mais de mil pessoas refugiadas e migrantes em 2022. O projeto promove orientações sobre direitos e proteção, auxílio na regularização migratória, acesso a serviços públicos e mediação cultural. 

Transformando o sofrimento

“O Brasil foi o divisor de águas da minha vida. Desde que tive de fugir da Síria para sobreviver, tive minha família espalhada pelo mundo. Precisei encontrar força e coragem para seguir de cabeça erguida, mesmo carregando uma dor profunda. Desde então venho dando meu testemunho sobre como a guerra  dilacera a vida das pessoas, destrói  famílias. Venho buscando transformar o sofrimento em superação, transformando minha voz na voz daqueles que não conseguiram chegar até aqui”, afirma Abdul Jarur. 

Abdul é  ativista da causa migratória e vem trabalhando na construção de espaços de reconhecimento do valor humano e da interculturalidade. Para ele, é fundamental o protagonismo de migrantes e refugiados na defesa de seus direitos e na participação da criação de políticas públicas, razão pela qual Abdul decidiu lançar sua candidatura a deputado estadual pelo estado de São Paulo em 2022.

Gratidão

No auge da carreira como promotora auxiliar do Ministério Público na Venezuela, Nathaly Súnico viu o país entrar em uma grave crise social e política. Sem esperanças de seguir prosperando em seu país de origem, ela largou tudo e veio para o Brasil, onde atualmente trabalha como consultora e redatora jurídica para uma empresa privada. 

“Queria expressar minha gratidão. Dos países latinoamericanos o Brasil é um país que não fechou as portas aos venezuelanos. Aqui conseguimos acessar a educação, [ter] uma identidade. Precisamos de pessoas dispostas a nos ensinar a fazer parte dessa cultura”.

Deslocamento e raça 

Nas novelas brasileiras exibidas em Angola, o Brasil  aparenta ser mais inclusivo do que realmente é, segundo o advogado angolano João Paulino. 

“A tua origem, o local de onde você saiu e o que o país que te recebe consome sobre o seu país vai determinar a maneira como você vai ser tratado. Por ser africano, por ser negro, você entende que os estigmas são muitos. Isso faz com que você seja lido de um certo jeito”.

Por outro lado, ele acredita que existe um sentimento de apoio e vontade de ajudar.

“Por mais que o Estado brasileiro não seja perfeito – é um Estado com muitas desigualdades e mazelas – em termos de conscientização do próximo, de apoio e de ajuda, [o Brasil] é muito forte nesse sentido”, conta o angolano, que também destacou o apoio recebido de organizações sociais para acessar o mercado de trabalho, além de  auxílios concedidos pelo Governo Federal durante a pandemia. 

 Relatório da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) 

Juliana Tubini, do escritório do ACNUR em São Paulo, apresentou o relatório anual da agência com dados sobre refúgio e deslocamentos forçados em todo o mundo até dezembro de 2021. A pesquisa também inclui dados recentes referentes ao conflito na Ucrânia. 

“A situação da Ucrânia, que teve início no primeiro semestre deste ano de 2022, é uma das situações que gerou o maior e mais rápido deslocamento de pessoas no mundo desde o final da Segunda Guerra Mundial. Desde o início do conflito na Ucrânia,  a gente tem  7,1 milhões de ucranianos deslocados dentro das fronteiras da Ucrânia e 7,2 milhões de ucranianos fora do país”, relata Juliana. 

De acordo com o relatório, foi ultrapassada a marca histórica de mais de 100 milhões de pessoas deslocadas no mundo. Síria, Venezuela, Afeganistão, Sudão do Sul e Mianmar figuravam entre os países com maior número de pessoas deslocadas até dezembro de 2021, número que foi superado em 2022 após o conflito na Ucrânia. 

Alguns dados do relatório: 

  • 23 países (com população somada de mais de 850 milhões de pessoas) enfrentaram conflitos de níveis alto ou médio ao longo de 2021. O número de países afetados por conflitos dobrou na última década. 
  • Conflitos e tensões que geraram deslocamentos em 2021 incluem: Afeganistão, Etiópia, Burkina Faso, Mianmar e Venezuela. 
  • Mulheres e crianças são as populações mais expostas à discriminação e vulnerabilidades.
  • As crianças representam 30% da população mundial, mas 42% de todas as pessoas deslocadas à força
  • A probabilidade de situação prolongada de refúgio (> 5 anos) varia entre 63% e 99%, a depender do contexto vigente. 
  • 83% dos deslocados vivem em países em desenvolvimento, 72% em países vizinhos ao país de origem.

 Soluções:

  • 5,7 milhões de pessoas deslocadas à força retornaram para suas regiões ou países de origem em 2021, incluindo 5,3 milhões de deslocados internos e 429,3 mil pessoas refugiadas.

O relatório completo pode ser conferido aqui (em inglês) e aqui (em espanhol).

Após a apresentação do relatório, Juliana falou sobre a atuação da Agência da ONU para Refugiados no Brasil. 

“Nossa atuação no Brasil é muito pautada em estratégias de integração local. Felizmente temos observado nos últimos anos, no Brasil, um envolvimento maior dos governos locais para  pensar em estratégias públicas para essas populações, pensar em políticas, prever a participação dessas pessoas em conselhos e comissões locais, fortalecendo o trabalho histórico das organizações da sociedade civil. O ACNUR  trabalha nesse sentido de coordenar os esforços e ações com esses atores, para que tenhamos um Brasil mais inclusivo e com políticas de ponta e referência para a integração de refugiados e solicitantes de refúgios no Brasil”. 

*O Projeto Integra é implementado pela Círculos de Hospitalidade de acordo com o termo de colaboração firmado com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, Convênio 917921/2021, e realizado com o financiamento do Edital de Chamamento Público SENAJUS N° 01/2021.

 

Texto: Sansara Buriti

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Cynthia Orengo

Vice-presidente

Cynthia é gestora de pessoas e servidora do Ministério Público Federal. Trabalha com projetos que resgatam o princípio da dignidade da pessoa humana, por meio de ações de responsabilidade social e voluntariado. Foi parceira da Círculos de Hospitalidade em diversos projetos e ações, como o Pedal Humanitário, que idealizou junto com a Bruna Kadletz. Apaixonada  pelas causas humanitárias, acredita em um mundo sem muros e fronteiras. Na organização, trabalha com ações de acolhimento, proteção e integração de pessoas deslocadas.